Inibidores e antidrone: resposta a uma fuga que expôs falhas
Um ano depois da fuga de cinco reclusos que envergonhou o sistema prisional, Vale de Judeus prepara-se para um salto tecnológico: instalação de inibidores de sinal para telecomunicações e drones. O processo está na fase de adjudicação e tem meta de conclusão até ao final do ano. Não é um detalhe técnico — é uma mudança de postura num sistema que, como a própria tutela reconheceu, estava vulnerável.
A decisão nasce da auditoria ordenada pela ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, às 49 prisões do país. O levantamento identificou problemas repetidos: equipamentos desatualizados, falhas de organização, carências de recursos e rotinas que, no papel, existiam, mas não eram cumpridas. Em Vale de Judeus, isso traduziu-se numa janela de oportunidade que cinco detidos aproveitaram.
Os inibidores agora previstos atacam dois pontos críticos. Primeiro, o uso ilícito de telemóveis dentro das celas, que alimenta extorsões, ameaças e coordenação de crimes cá fora. Segundo, o risco crescente de entregas por drone — desde cartões SIM e telemóveis a substâncias proibidas — que contornam muros e revistas. Ao cortar a comunicação e o posicionamento GPS na envolvente controlada, as aeronaves civis perdem utilidade e os pilotos remotos, margem de manobra.
O plano vai além de Vale de Judeus, mas o estabelecimento no distrito de Santarém é um teste visível de uma estratégia nacional de modernização. A expectativa, segundo fontes do setor, é que a tecnologia seja calibrada para não interferir com serviços essenciais nas imediações e com as comunicações críticas das forças de segurança. Em Portugal, este tipo de equipamento é de uso excecional e depende de licenças, com acompanhamento técnico do regulador das comunicações.
O que muda, na prática? A gestão prisional ganha controlo sobre três frentes: redes móveis (2G a 5G), Wi‑Fi clandestino e sinais de navegação por satélite usados por drones. Com configurações por célula e potências ajustáveis, a cobertura procura ficar “dentro das paredes”, limitando impactos exteriores. É tecnologia que exige manutenção, monitorização permanente e integração com CCTV e alarmística. Não é comprar, ligar e esquecer.
O investimento, cujo valor não foi divulgado, virá acompanhado de formação para equipas no terreno. Sem procedimentos claros, qualquer sistema, por avançado que seja, vira ornamento caro. A experiência internacional mostra que os ganhos aparecem quando a tecnologia está colada a rotinas: rondas cronometradas, revisão de mapas de zonas mortas de vídeo, testes regulares de alcance e relatórios semanais de incidentes.
Há também o lado comunitário. Inibidores mal afinados podem chatear vizinhos e empresas nas redondezas. O caminho passa por medições antes e depois, canais de contacto para reclamações e ajustes de potência quando necessário. Transparência ajuda a evitar ruído político e burocrático que atrasa o essencial: reduzir o risco de fugas, contrabando e violência.
Vale notar a diferença entre detetar e inibir drones. O pacote anunciado aponta para inibição, mas os especialistas sublinham a utilidade da deteção passiva — perceber que algo se aproxima, de onde e com que intensidade — para orientar equipas no terreno. Mesmo sem detalhes oficiais, a combinação de barreiras digitais com vigilância reforçada nos pátios internos é a linha de tendência na Europa.
Auditorias, responsabilidades e próximos passos
A fuga expôs não só buracos tecnológicos, mas também falhas de comando. O relatório do Serviço de Auditoria e Inspeção da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) deu origem a processos disciplinares. O então diretor do estabelecimento, Horácio Ribeiro, foi apontado por incumprimento de deveres gerais — interesse público, diligência e lealdade. A atuação da diretora em exercício no dia da fuga também foi criticada pela falta de garantia no cumprimento de protocolos de vigilância e na validação de horários.
O chefe dos guardas foi responsabilizado por falhas na vigilância e na segurança naquele dia, incluindo grelhas de serviço insuficientes para cobrir, com presença física e vídeo, os pátios internos. Guardas — entre eles um chefe de ala — foram alvo de processos por desrespeito de instruções escritas, o que resultou em menos rondas, menos olhos no ecrã e uma deteção tardia dos movimentos que antecederam a evasão.
As consequências chegaram ao topo. O então diretor-geral da DGRSP, Rui Abrunhosa Gonçalves, foi exonerado após o incidente. Primeiro assumiu interinamente Isabel Leitão; mais tarde, Orlando Carvalho foi nomeado diretor-geral em funções. A mudança na liderança é um sinal de que a tutela não quer apenas remendos técnicos, mas uma correção de rumo na cadeia de comando e nos hábitos de trabalho.
Em paralelo, o Ministério Público abriu inquérito para apurar eventuais responsabilidades criminais relacionadas com as falhas de segurança. Essa frente corre com discrição, como é regra, mas mantém pressão sobre a administração e sobre as equipas para que os procedimentos passem do papel para a prática diária.
O plano de reforço agora em marcha segue três eixos: tecnologia, pessoas e organização. A tecnologia inclui inibição de sinais, melhoria de CCTV, sensores nos perímetros e gestão de acessos mais fina. No eixo das pessoas, a prioridade é formação, reposição de efetivos onde há buracos e redistribuição de tarefas para reduzir fadiga e erros. Na organização, a grande dor tem sido a previsibilidade: horários estáveis, validação de escalas sem improvisos e auditorias surpresa para verificar cumprimentos.
Métricas claras vão ser o teste da eficácia. O que medir? Entre outros: número de aparelhos apreendidos por mês, incidentes ligados a drones, tempos de resposta a alarmes, períodos de indisponibilidade dos sistemas e auditorias internas com indicadores comparáveis entre estabelecimentos. Sem números, a reforma fica cega.
Há, claro, riscos a gerir. Inibidores podem afetar o sinal de visitantes e de moradores próximos, se a calibração for deficiente. Podem ainda criar uma falsa sensação de segurança: quando a tecnologia funciona, a tentação é baixar a guarda nas rotinas básicas. E há sempre um mercado paralelo que se adapta — telemóveis modificados, técnicas de blindagem, novas rotas de contrabando. Por isso, o desenho do projeto prevê revisões periódicas e capacidade de atualização de firmware e hardware sem grandes paragens.
No xadrez prisional, drones são só a peça mais visível da modernização do crime. O uso de apps de mensagens cifradas, cartões pré-pagos e “mulas” tecnológicas obriga a respostas coordenadas com polícias, regulador de comunicações e autoridades aeronáuticas. Em Portugal, a coordenação operacional com as forças de segurança e a supervisão técnica do regulador são fundamentais para garantir que o combate ao ilícito dentro das prisões não cria problemas lá fora.
O calendário marcado — adjudicar já, instalar até ao fim do ano — é ambicioso, mas possível se os concursos públicos não emperrarem. A indústria tem soluções modulares que permitem instalar primeiro nas zonas críticas e expandir depois. Em Vale de Judeus, faria sentido começar por pátios internos, alas com histórico de apreensões e pontos altos usados como miradouros para sinal.
Portugal não está sozinho nesta corrida. Prisões em Espanha, França e Reino Unido avançaram com sistemas de inibição e contramedidas antidrones após incidentes de contrabando e tentativas de fuga. A lição comum é simples: tecnologia ajuda, mas sem disciplina e liderança, tudo volta ao ponto de partida.
O episódio de Vale de Judeus funcionou como alarme. O país sabe agora onde falhou, quem falhou e o que tem de mudar. Com a instalação dos sistemas, o foco desloca-se para a execução: calibrar bem, treinar pessoas, medir resultados e ajustar rápido. Se isso acontecer, a probabilidade de repetir o susto baixa. E é isso que a sociedade espera de um sistema prisional que quer ser moderno e seguro.